sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Resumo da para alunos!!!!

Segue um breve resumo da apostila.

Não possui os textos anexos que debateremos em sala de aula.

Ética – Unidade IV

Ética e violência

Quando acompanhamos a história das idéias éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontrase o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.

Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros.

Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência. Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime. Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.

A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.

Os constituintes do campo ético

Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética. A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto).

A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.

O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral , principal constituinte da existência ética. O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:

  • ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
  • ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
  • ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;
  • ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.

O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas. Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo1.

Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral. Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo. Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins.

Costuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia. Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais. No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético. No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos. A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes. Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto: forçar-nos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia.

A filosofia moral

Ética ou filosofia moral

Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social. No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates. Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem? As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem. Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas ”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.

Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos.

É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil. (LA BOÉTIE, 2001, p. 15).

A discussão em torno da liberdade tem se apresentado, historicamente, como um problema para a humanidade. Recorremos aqui a dois filósofos, distantes de nós em termos de tempo, mas não em relação à discussão e preocupação que demonstraram em relação à liberdade. O primeiro, Guilherme de Ockham, nascido na vila de Ockham, condado de Surrey, próximo de Londres, entre 1280 e 1290. O segundo, Etienne de La Boétie, nascido em Serlat, na França, em 1530. São dois autores de épocas e lugares diferentes que discutem o mesmo problema – a liberdade.

Três grandes concepções filosóficas da liberdade

Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte. Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”. As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.

A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).

Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.

Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.

No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.

Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram. Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa.

Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto mundo”. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade.

A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes. O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa -, ou a Cultura – como para Hegel – ou, enfim, uma formação histórico-social – como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas.

Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado para escolher – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe -, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.

Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz.

Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade humana?

São duas as respostas a essa questão:

  1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
  1. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir.

Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóicohegeliano, existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.

Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazê-la. Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva.

O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.

Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três concepções apresentadas, sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam.

As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.

Liberdade e possibilidade objetiva

O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possível, porém, é aquilo criado pela nossa própria ação. É o que vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como “árvore milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las. Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.

Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou vazará, inundando a casa, a luz permanecerá apagada ou haverá um curtocircuito, incendiando a casa, a porta permanecerá fechada ou será arrombada, deixando a casa ser invadida. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado.

A vida política

"O governo apresenta suas armas

discursos reticentes

novidade inconsistente

e a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godart"

- Selvagem, Paralamas do Sucesso

Paradoxos da política

Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ouconcerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?

Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?

No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido. De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.

Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.

Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos?

Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e organização.

Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três significados principais inter-relacionados:

      1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro dizrespeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos. Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo. A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado;
    1. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
    1. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócioeconômica e política.

Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais. Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.

Sistemas políticos de governo

A teoria liberal

O pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural? Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto.

Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.

O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.

O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano? A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:

  1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
  1. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;
  1. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.

Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.

Liberalismo e fim do Antigo Regime

As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime. Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante. O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem o rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados.

As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão. Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade. Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares.

Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza.

O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.

Marxismo

Com a obra de Marx, estamos colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel. Embora suas teorias sejam completamente diferentes, pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes, ambos representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder. Maquiavel desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano, que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos. Marx desmistificou a política liberal partindo da crítica da economia política.

A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. Oikos é a casa ou família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações, artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.).

Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despotes.

Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?

A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas. Nem poderia. O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os não-proprietários.

Por que a expressão economia política tornou-se possível na modernidade e, doravante, visível? Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato.

De fato, a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX, na França e na Inglaterra, para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada como liberalismo econômico. Diferentemente dos gregos, que definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que definiram o homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades, consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.

As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a primeira é a noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bemestar; a segunda é a noção de que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio benefício e interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de legítima moralmente, porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça.

A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites. Para alguns economistas políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura) é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular, sem que o Estado deva interferir na sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político. Marx indaga: O que é a sociedade civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos interesses antagônicos serão conciliados pelo contrato social, que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade gerais. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica (agricultura, indústria e comércio), realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas, polícia, partidos políticos, meios de comunicação, etc.). É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científicofilosóficas e políticas.

A sociedade civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mão-de-obra. Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de classes.

Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é. O que é, porém, o Estado?

Longe de diferenciar-se da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o

todo social.

O Estado é a expressão política da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Não é, mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados (vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais).

A economia, portanto, jamais deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e necessário entre economia e política tornou-se evidente.

No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria? Marx faz duas indagações:

  1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado?
  1. Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político?

Anarquismo

O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin, inspirado nas idéias socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado liberal, considerado autoritário e antinatural. Como Rousseau, os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades, atribuindo a origem da sociedade (os indivíduos isolados e em luta) à propriedade privada e à exploração do trabalho, e a origem do Estado ao poder dos mais fortes (os proprietários privados) sobre os fracos (os trabalhadores).

Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propõem o retorno à vida em comunidades autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e direção. Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a responsabilidade, em cujo nome propõem a descentralização social e política, a participação direta de todos nas decisões da comunidade, a formação de organizações de bairro, de fábrica, de educação, moradia, saúde, transporte, etc.

Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais, evitando, porém, a forma parlamentar de representação e garantindo a democracia direta.

As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações. Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela assembléia da federação; terminada a assembléia, o mandato também termina, de sorte que não há representantes permanentes. Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade, se não cumprir o que lhe foi delegado, seu mandato será revogado e um outro delegado eleito.

Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam à formação do Estado. Recusam, por isso, a existência de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias populares, que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da opressão capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem fronteiras, pois “só o capital tem pátria” e os trabalhadores são “cidadãos do mundo”.

Os anarquistas são conhecidos como libertários, pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes anarquistas foram: Kropotkin, Ema Goldman, Tolstoi, Malatesta e George Orwell, autor do livro 19842 Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia

Resumo da para alunos!!!!

Segue um breve resumo da apostila.

Não possui os textos anexos que debateremos em sala de aula.

Ética – Unidade IV

Ética e violência

Quando acompanhamos a história das idéias éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontrase o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.

Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros.

Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência. Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime. Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.

A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.

Os constituintes do campo ético

Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética. A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto).

A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.

O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral , principal constituinte da existência ética. O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:

  • ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
  • ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
  • ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;
  • ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta.

O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas. Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo1.

Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral. Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo. Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins.

Costuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia. Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais. No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético. No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos. A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes. Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto: forçar-nos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia.

A filosofia moral

Ética ou filosofia moral

Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social. No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates. Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem? As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem. Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas ”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.

Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos.

É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil. (LA BOÉTIE, 2001, p. 15).

A discussão em torno da liberdade tem se apresentado, historicamente, como um problema para a humanidade. Recorremos aqui a dois filósofos, distantes de nós em termos de tempo, mas não em relação à discussão e preocupação que demonstraram em relação à liberdade. O primeiro, Guilherme de Ockham, nascido na vila de Ockham, condado de Surrey, próximo de Londres, entre 1280 e 1290. O segundo, Etienne de La Boétie, nascido em Serlat, na França, em 1530. São dois autores de épocas e lugares diferentes que discutem o mesmo problema – a liberdade.

Três grandes concepções filosóficas da liberdade

Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte. Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”. As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.

A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).

Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.

Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.

No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.

Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram. Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa.

Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto mundo”. É ela também que se encontra no poema de Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade “está sempre apenas onde a pomos” e “nunca a pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade.

A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes. O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa -, ou a Cultura – como para Hegel – ou, enfim, uma formação histórico-social – como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas.

Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado para escolher – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe -, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.

Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz.

Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade humana?

São duas as respostas a essa questão:

  1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
  1. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir.

Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóicohegeliano, existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis.

Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazê-la. Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva.

O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.

Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três concepções apresentadas, sempre levaram em conta a tensão entre nossa liberdade e as condições – naturais, culturais, psíquicas – que nos determinam.

As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.

Liberdade e possibilidade objetiva

O possível não é o provável. Este é o previsível, isto é, algo que podemos calcular e antever, porque é uma probabilidade contida nos fatos e nos dados que analisamos. O possível, porém, é aquilo criado pela nossa própria ação. É o que vem à existência graças ao nosso agir. No entanto, não surge como “árvore milagrosa” e sim como aquilo que as circunstâncias abriram para nossa ação. A liberdade é a consciência simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las. Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer.

Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele – a torneira permanecerá seca ou vazará, inundando a casa, a luz permanecerá apagada ou haverá um curtocircuito, incendiando a casa, a porta permanecerá fechada ou será arrombada, deixando a casa ser invadida. A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo”, nem no conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado.

A vida política

"O governo apresenta suas armas

discursos reticentes

novidade inconsistente

e a liberdade cai por terra aos pés de um filme de Godart"

- Selvagem, Paralamas do Sucesso

Paradoxos da política

Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ouconcerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?

Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?

No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido. De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.

Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.

Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos?

Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e organização.

Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três significados principais inter-relacionados:

      1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro dizrespeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos. Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo. A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado;
    1. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
    1. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócioeconômica e política.

Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais. Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.

Sistemas políticos de governo

A teoria liberal

O pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural? Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto.

Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.

O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade. Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.

O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano? A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:

  1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;
  1. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercalase uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;
  1. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.

Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.

Liberalismo e fim do Antigo Regime

As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime. Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor. Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante. O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem o rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados.

As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão. Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade. Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares.

Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza.

O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.

Marxismo

Com a obra de Marx, estamos colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel. Embora suas teorias sejam completamente diferentes, pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes, ambos representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder. Maquiavel desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano, que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos. Marx desmistificou a política liberal partindo da crítica da economia política.

A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. Oikos é a casa ou família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações, artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.).

Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despotes.

Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?

A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas. Nem poderia. O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os não-proprietários.

Por que a expressão economia política tornou-se possível na modernidade e, doravante, visível? Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato.

De fato, a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX, na França e na Inglaterra, para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada como liberalismo econômico. Diferentemente dos gregos, que definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que definiram o homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades, consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.

As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a primeira é a noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bemestar; a segunda é a noção de que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio benefício e interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de legítima moralmente, porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça.

A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites. Para alguns economistas políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura) é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular, sem que o Estado deva interferir na sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político. Marx indaga: O que é a sociedade civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos interesses antagônicos serão conciliados pelo contrato social, que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade gerais. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica (agricultura, indústria e comércio), realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas, polícia, partidos políticos, meios de comunicação, etc.). É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científicofilosóficas e políticas.

A sociedade civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mão-de-obra. Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de classes.

Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é. O que é, porém, o Estado?

Longe de diferenciar-se da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o

todo social.

O Estado é a expressão política da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Não é, mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados (vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais).

A economia, portanto, jamais deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e necessário entre economia e política tornou-se evidente.

No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria? Marx faz duas indagações:

  1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado?
  1. Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político?

Anarquismo

O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin, inspirado nas idéias socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado liberal, considerado autoritário e antinatural. Como Rousseau, os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades, atribuindo a origem da sociedade (os indivíduos isolados e em luta) à propriedade privada e à exploração do trabalho, e a origem do Estado ao poder dos mais fortes (os proprietários privados) sobre os fracos (os trabalhadores).

Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propõem o retorno à vida em comunidades autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e direção. Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a responsabilidade, em cujo nome propõem a descentralização social e política, a participação direta de todos nas decisões da comunidade, a formação de organizações de bairro, de fábrica, de educação, moradia, saúde, transporte, etc.

Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais, evitando, porém, a forma parlamentar de representação e garantindo a democracia direta.

As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações. Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela assembléia da federação; terminada a assembléia, o mandato também termina, de sorte que não há representantes permanentes. Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade, se não cumprir o que lhe foi delegado, seu mandato será revogado e um outro delegado eleito.

Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam à formação do Estado. Recusam, por isso, a existência de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias populares, que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da opressão capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem fronteiras, pois “só o capital tem pátria” e os trabalhadores são “cidadãos do mundo”.

Os anarquistas são conhecidos como libertários, pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes anarquistas foram: Kropotkin, Ema Goldman, Tolstoi, Malatesta e George Orwell, autor do livro 19842